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Conheça 2 contos do livro O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler:
Vigília
A velha sentada na varanda suspensa de madeira não mexe mais os olhos para ver o que acontece no chão, cinco metros abaixo. Ela não respira. Para não sentir o cheiro da podridão que vai além das fezes dos animais e do mijo dos bêbados e da porra dos homens que trepam com as prostitutas no beco e das línguas que envenenam histórias nos ouvidos fracos e do tabaco vagabundo dos operários. Ela não está morta. Mas é como se estivesse. E talvez esteja. Não da morte que deita no caixão e põe nas narinas algodões para aparar os fluidos fétidos do corpo. Ela morreu de inexistência. Do dia após dia em que ganhar nunca foi opção. Ela perdeu. Tudo. Os dentes da boca infectada; os cabelos brancos fracos e finos que os anos trouxeram antes ainda da velhice; o tesão que aliviou tantas noites cansadas de dias de trabalho insano; muitos filhos que não se sustentaram na barriga por causa da fome e das doenças; o companheiro que foi embora deixando para trás — doente — a única cria que vingou e quatro tíquetes de refeição que recebeu em pagamento por um serviço de pedreiro. Além da criança, que logo virou anjinho, ainda ficou para trás uma solidão que também tinha fome. A única que ela conseguiu nutrir até que os farelos se acabaram.
Inerte. Na varanda. É assim que ela vive. Na cabeça, um pano encardido para esconder a calvície. E um vestido preto que não é de luto, mas da sobra dos sacos de caridade da igreja. Um dos olhos já quase não se abre. O outro não se importa. Ela não sente nada. Nem alívio. Ao lado, um prato de comida que alguém traz quando pode. Vazio. E uma caneca de água pela metade. Ela sempre come tudo. E bebe aos goles. Deixa que mãos estranhas a banhem numa bacia de água fria, a vistam com o mesmo vestido preto, envolvam a sua cabeça no mesmo pano encardido, e a levem de volta à cadeira na varanda. Ela come e bebe porque quer ficar forte para continuar a vigília. E se esquecer de tudo o que fede e grita cinco metros abaixo. Quer se aprumar para caminhar com a morte quando ela chegar. Na direção do céu, que só existe bem longe. Lá, ela vai conhecer os filhos que não vingaram e vai rever a cria doente, o pai funileiro, a mãe costureira. Gente que a saudade desassossegada nunca deixou partir do pensamento. E vai ganhar vestido novo. Todo branco. E uma tiara brilhante para prender os cabelos pretos, longos, cheios. Essas coisas que só Deus dá. No céu.
***
Coragem
Antes que a aula termine, peço a ela que fique um pouco mais depois do horário. Não que eu acredite que possa ajudar. Não mais. Fiz isso durante os dois primeiros anos, mas não adiantou. Pelo contrário. Quanto mais eu tentei ajudá-las, mais elas se afastaram de mim, me evitaram. Tive noites de medo, de desespero. Em vão. Então, bem devagar, com grande esforço, fui me distanciando dessas vidas tão frágeis, desses corpos franzinos que não precisam de ajuda, mas de estruturas permanentes que eu não posso oferecer.
Quando o que se tem para dar é apenas salvação, não se tem nada. A salvação é patética. Uma visão unicista e distorcida da realidade, baseada na nossa crença pessoal do que é melhor para todos. A meu favor, o fato de ser uma crença honesta. Mas as crenças não bastam. Honestas ou não. Acreditar é perigoso. Dói.
Foi um tempo de conversas e pensamentos que não vingaram. A cada insucesso, a teimosia de uma nova tentativa. Até que as opções se esvaziaram e eu finalmente assumi o que os sinais gritavam havia muito tempo: que a normalidade, do meu ponto de vista, era somente uma farsa ruim.
A aula acabou. Agora, estamos só nós duas. Estranhamente, não sei o que dizer. Eu e meus pontos de vista já testados, sem valia. Eu e minhas promessas até aqui cumpridas de não me envolver nunca mais. Mas hoje não consigo me conter. Não que ela seja assim tão diferente das outras. Os mesmos olhos baixos, o mesmo riso pouco, as mesmas unhas pintadas de vermelho, o mesmo cabelo comprido alisado, o mesmo batom escandaloso, as mesmas manchas roxas ocasionais no pescoço, o mesmo perfume adocicado e forte. A mesma menina a quem dediquei conselhos e noites insones. Em outros tempos, em outros corpos. A compulsão de ajudar, contida por tantos anos, volta. E eu me reaproximo do caos.
Luísa Cristina tem 14 anos. E é preciso que tenha nome e história para não ser somente uma estatística ruim. Luísa Cristina é apenas uma menina. Mais uma. Pobre. Invisível. Que sonha com cantores e artistas que só vai conhecer nas telas, nas revistas, na internet. Que se enfeita para príncipes. Para se entregar logo mais aos meninos ávidos que oferecem um sexo bruto, rápido e malfeito. Desprovidos de afeto, como ela. Acenando com o status de um dinheiro que não importa de onde vem. Não para ela.
Ela é bonita. Pele lisa, cor de carvalho jovem. Olhos de jabuticaba madura, pintados com o traço preto e alongado do delineador bem passado. Dentes grandes e brancos nos quais as cáries ainda não fizeram estragos. Cabelos pretos, um pouco menos limpos do que se espera; compridos demais. Mas existe alguma coisa que não combina. Que não harmoniza. Talvez o repuxar dos cantos da boca. Talvez o piscar excessivamente lento. O desinteresse pelas aulas, o esmalte descascado nas pontas, o suor persistente na testa, o olhar desconfiado e embaçado, o riso fácil e bobo. Coisas que antes não estavam lá.
Assim que ela se senta, eu sinto o cheiro de álcool. Passa pouco do meio-dia e o hálito azedo me conta que já faz algum tempo que a bebida foi ingerida. A dor guardada há anos retorna, resgatando argumentos cuidadosamente esquecidos. A voz não sai. É preciso repensar o discurso gasto que não vai me levar a lugar algum.
Tenho somente uns instantes até que ela se canse do meu silêncio e se tranque bem fundo. Não quero que ela perceba em mim piedade ou rejeição. Seria o mesmo que empurrá-la para ainda mais longe. Por isso, quebro as promessas que me fiz. Desisto do cuidado com as palavras, do rosto inexpressivo e de toda a prudência. Pergunto o que está acontecendo. Sem rodeios. Pergunto como se não soubesse. Pergunto sem qualquer esperança de ouvir uma resposta que derrube o muro entre nós duas. Mas, surpreendentemente, ela me conta tudo. Detalha momentos que me constrangem. A voz lenta, baixa, entrecortada, pastosa. Não há encenação nesse rosto em que algumas espinhas denunciam a pouca idade que a maquilagem insiste em aumentar. Ela não reduz nem exagera, não esconde nem enfeita.
Aprendeu a beber com a mãe. A mãe que a leva para a casa da avó antes de sumir e reaparecer dias depois com esmaltes, batons, doces, chicletes, perfumes e roupas baratas. Que a deixa na casa da avó porque lá ela está a salvo. De tudo. A mãe a quem ela ama com a fidelidade da admiração. A mãe que ela encontra caída no canto de um botequim imundo, dormindo encostada numa parede. E a quem tenta acordar primeiro com carinhos, depois com sacudidas e, finalmente, com gritos, até que o dono do bar, para se ver livre da confusão, vem ajudá-la.
No barraco de chão batido, vê o corpo desmaiado ser jogado pelo homem no sofá furado da sala. Vê e aprende. Começa a ir buscar a mãe no botequim todos os dias. E a deitá-la no sofá vagabundo, e a dar banho nela, e a coar um café ralo que a obriga a tomar. Aprende a limpar o vômito, a merda e o mijo que fedem por toda parte. E descobre garrafas de pinga barata escondidas em gavetas e em caixas de papelão.
Prova a bebida por curiosidade. Para entender. Não gosta. Mas o calor e o relaxamento do corpo lhe trazem uma alegria desconhecida. E coragem. Passa dias sem tomar outro gole. Até que sente vontade de ter coragem outra vez. Para se exibir para os meninos do colégio, para se achar bonita, para se esquecer das roupas velhas, para não se lembrar da mãe babando no chão do bar, para ser outra pessoa. Bebe de novo. Um pouco mais. Quando a mãe descobre, acha graça. E faz dela confidente, cúmplice, companheira. Leva-a para o bar nos fins de semana. Ensina-a a agradar os homens para que eles paguem pelas bebidas e pelos boquetes inexperientes feitos na rua, atrás do bar. Mas não deixa que ela vá além do sexo oral. Quem quiser tirar o cabaço da filha que pague muito bem. E que pague adiantado. E que seja limpo. E que a leve para um quarto com banheiro e cama macia. Se não for assim, Luísa Cristina não vai dar para ninguém. Não, não vai. Nada de trepar com os meninos do colégio. Eles não podem pagar.
Eu pergunto a ela quanto tempo faz. Desde o primeiro gole. Mas a resposta não importa. Qualquer tempo é muito. Ela segue respondendo a todas as perguntas. Sem culpa. Eu só me surpreendo quando ela me diz que ainda é virgem. Depois de tantos anos assistindo ao sexo precoce de meninas como ela, de ver gravidezes abortadas ou crianças sendo paridas por crianças, eu ainda me assusto. Ela confessa que se guarda para o menino de quem gosta. Não quer dormir com nenhum daqueles homens do botequim. E é isso que me apavora mais do que o resto. Saber que essa criatura frágil ainda sonha. É tão mais fácil quando vejo nelas o jeito adulto da descrença, o deboche da vulgaridade, a desistência irremediável. Tão mais fácil.
Luísa Cristina não tem opções. Como tantas outras. Mas acha que tem. Ela pensa que dormir de graça com o menino da escola será melhor que com o bêbado arranjado pela mãe. Não sabe que ambos vão marcá-la com a desgraça. Que tudo é atalho conduzindo aos mesmos vícios. Que álcool, sexo, drogas, sonhos são caminhos iguais. Que entre todos os vícios ela escolheu o pior: acreditar. Ela não sabe. Mas eu sei. E quero estar lá quando ela descobrir que não há salvação. Que a salvação é patética. Estar lá quando a fé se tornar o pior inimigo. Para lhe oferecer uma escolha. Qualquer uma.
Preciso dizer isso a ela. Não agora. Não hoje. Talvez amanhã ou semana que vem. O que eu ainda não sei é que Luísa Cristina é um nunca mais. Que ela vai beber uma garrafa de pinga quando souber que a mãe já marcou dia e hora e preço para que ela seja estuprada na cama macia de um motel. Que estimulada pela coragem mentirosa do álcool ela vai acreditar que tem o direito de escolher o seu destino. Escolher, pela primeira vez. Escolher, pela última vez. Escolher o veneno de ratos debaixo da pia da casa da avó.
A casa da avó, onde ela
está a salvo de tudo. De tudo. Até da vida.
Nome
O SEMEN DO RINOCERONTE BRANCO
CodBarra
9788582979051
Segmento
Literatura e Ficção
Encadernação
Brochura
Idioma
Português
Data Lançamento
01/01/2020
Páginas
128
Peso
185,00
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