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“casa é algo maior do que as pessoas que moram ali dentro, é maior que a própria casa.”
“a guerra não tem rosto de mulher", de svetlana aleksiévitch
e se tivéssemos desistido, se percebêssemos que o melhor, helena, seria a tarde em família, a intimidade evitada, o incômodo convívio dos últimos dias desmantelado por uma certa boa-vontade, por uma pitada de diálogo, quem sabe?,
e se tivéssemos, helena, alterado apenas um pouco nossa rotina de mostras de arte, de filmes europeus, de lançamentos de livros, de vernissages?,
só que a fascinação por kandinsky era quase inviolável, uma vaidade, essa farsa de erudições estéticas, e, além da ansiedade, helena, havia a normalidade cotidiana, que devíamos reverenciar: a rotina, de forma que não encontrássemos desculpas para renunciarmos ao programa,
e, já perto do centro cultural, quanta gente, deus!, uma fila agourenta a se contorcer pelas calçadas, desiludida, atiçada por um sol intolerante, atípico, e eu incomodado com a espera, com o alvoroço, sem cogitar que o vírus podia estar ali, rastreando um corpo e que esse hospedeiro podia ser ela, helena, a menina teoricamente vigorosa, uma criança provavelmente vista como pronta, completa, identificada inocentemente por nós como algo sólido, resistente, uma garota equipada com certa inteligência precoce, o que nos levava a tratá-la muitas vezes como adulta,
estávamos desatentos dos assuntos da infância, atravessando a passos impacientes a meia-idade, sem referências daquele estado constante de elaboração, já que não usufruíamos das benesses de alguma amizade e esses amigos que não possuíamos tampouco tinham filhos, de forma que não contávamos com a serenidade necessária para apreender o outro,
quanta gente!, repeti, e você, helena, riu de minha ansiedade, quanta gente!, você caçoou, esperando por aquele comportamento, já que os termos composição viii, expressionismo, entre outros, impregnaram nossas conversas nos últimos dias,
e se, para começar, nos privássemos da exposição?, que diferença faria kandinsky em nossas experiências?, se tivéssemos reconsiderado, na semana anterior, ou na hora anterior ou no minuto anterior?, era, de fato, só porque havíamos decidido mais uma vez cumprir o planejamento semanal?,
na cidade, as pessoas estavam alarmadas com o surto da doença, amplificado por uma mídia que conhecíamos razoavelmente bem para nos sobressaltarmos de antemão,
e, a menos de algumas ambiguidades ou adulterações nos dados, ocorreram algumas mortes, mas o que eram algumas mortes diante da solidez de nosso hábito?,
e não era apenas o hábito, helena, era também a vaidade, era a certeza de termos assuntos nas reuniões com os amigos, era um jeito de aproveitarmos o tempo com algo útil, um tempo não apenas nosso, mas sobretudo da menina,
e se, ao atinarmos com a fila, em vez de nos ajeitarmos lá no final, resolvêssemos que era sacrifício demais para um domingo?, assim, renunciaríamos à empreitada, um de nós – eu, provavelmente, estapearia o céu da boca com a língua, insinuaria algo entre a heresia e a impotência e avançaríamos para a casa do pai,
para os avós esperançosos com nossa visita, com um presente à porta de entrada, acordados há algum tempo e o perfume do chá de erva-doce a se esgueirar por nossa gula, o despotismo dos carinhos compensando os olhos,
a beleza, helena, está em kandinsky, mas também na comissura das mãos se engastalhando no rabo-de-cavalo de nossa filha, de maneira que devíamos estar felizes,
mesmo ali, a dezenas de metros da entrada, distinguíamos uma pincelada de assinatura, uma fatia de cartaz, a extraordinária tela em uma reprodução passável e isso me entusiasmava, de maneira que nem o contratempo da longa espera, nem a inquietação desembocando em um leve desconforto, foram suficientes para considerarmos a debandada,
lá dentro, pessoas e cotovelos pleiteando uma localização um pouco mais privilegiada, um aglomerado de espécimes mais ou menos urbanos, indecisos, em procissão pelos quarenta segundos com um quadro famoso no horizonte,
e a menina em meu colo, entediada com o embaraçoso arranjo de cores, a menina e seu sono estorvado, a menina e eu, comprimidos contra outros seres, helena, eu e a menina apertados entre uma pilastra e outra, entre um espectador e outro, e mesmo assim parecíamos quase superiores, quase eruditos, quase iluminados por estarmos tão próximos de uma obra que sequer podíamos reverenciar adequadamente, que sequer podíamos compreender adequadamente,
quando aquele senhor espirrou perto de nós – e eu me recordo vivamente do homem a tentar esconder microrganismos detrás de um lenço –, e se naquele instante tivéssemos saído?: devíamos reparar no perigo do esguicho, devíamos saber que no salão se confinariam indescritíveis espécies de riscos, devíamos cuidar dos que amamos, helena,
mas ficamos: era verão demais para cogitarmos uma desgraça,
e, ao final da exposição, um desapontamento impreciso, ambíguo, pela realidade tão menor do que a expectativa, mas não nos renderíamos: que tal o almoço, que tal agora a visita aos parentes, que tal a sensação de que a normalidade continuaria prescrevendo as regras?,
(kandinsky menor que kandinsky)
e depois, nada mais existe, somos arruinados pelo cotidiano: vestir o uniforme para a escola, as birras das terças, quartas e sextas-feiras, a bronca, os castigos, as lições, a paciência minada pelo dia a dia de dívidas e de outras dificuldades, até recebermos a ligação da escola: o que fazer com aquela febre quase incontrolável?, o que fazer com o desânimo, o mal-estar incomum, as dores avançando sobre a couraça de anticorpos?,
e se eu tivesse ido buscá-la imediatamente, em vez de continuar burilando, por alguns minutos mais, um texto sem prazo para entrega, em vez de calmamente encerrar o software, desligar o notebook, espreguiçar, beber um pouco de água, conferir os trocados na carteira e ir a pé pela rua até o colégio?,
e se chamasse um táxi e corresse com ela para um pronto-socorro?,
e se, em vez de esperar você, helena, eu medicasse a menina: um antitérmico, quem sabe?, um analgésico, quem sabe?, um anti-inflamatório, quem sabe?,
mal chegamos em casa e ela vomita, mal vomita, helena, e é atacada por uma diarreia implacável, mal sai do banheiro, helena, e é outra garota, mais amarela, mais fraca, mais abatida e quer a cama e dessa vez não pressuponho, não profetizo, apenas peço um carro, escrevo aquele bilhete que hoje você guarda como um amuleto, helena, e vamos para o hospital, onde um residente nem se digna a pedir exames, onde um residente prescreve os mesmos remédios que imaginei dar mais cedo à nossa filha, onde um residente sorri o veredito cínico em quatro minutos de atendimento: virose,
e, se em vez de me resignar diante daquele atendimento, eu a carregasse para outra clínica, se desembolsasse o valor de uma consulta com algum especialista (em quê?), capaz de descobrir em um estreitar de pálpebras o que acossava a criança?, se em vez de retornarmos para casa eu sacasse o celular, gastando os últimos centavos de meu crédito, e ligasse para a pediatra, implorando uma consulta, mesmo sabendo que nenhum médico compreenderia qualquer emergência em um início de noite de quarta-feira?,
então, helena, você está conosco e examina a menina e depois quase principia um escândalo ao telefone até que a médica recomenda que acompanhemos o avanço dos sintomas, que a febre não pode superar os trinta e oito graus e meio e deve ceder em dois dias e também que esperássemos até sexta, nesses casos não há muito a fazer além de aguardar,
na cama, a menina e os dedos se entrincheirando na exuberância das sombras, os dedos como um cisne pinçando o vaivém de uma vertigem inexprimível, um pescoço de cisne drapejando no absurdo daquelas febres,
e se não tivéssemos obedecido a doutora, helena?, se saíssemos naquele mesmo instante e a levássemos a um hospital, exigindo o acompanhamento de um profissional mais experiente, se solicitássemos exames minuciosos, capazes de rastrear os microrganismos que molestavam nossa filha?, era tão evidente que aqueles dois dias só seriam um tempo a favor do inimigo: por que consentimos, helena?,
se reparássemos na índole daqueles fardados, desconfiaríamos do discurso salobro, um pouco decorado, um pouco desleixado diante de tanto drama, habitual, recorrente, deduziríamos que uma febre de dia já era razão para uma profilaxia qualquer, motivo para uma prevenção qualquer,
e havia menções cada vez mais amiudadas acerca da nova doença, alardeadas em redes sociais, em grupos de discussão, em páginas especializadas,
se pedíssemos comedidamente que indicassem uma ou duas injeções daquele remédio recém-descoberto, recém-lançado, recém-vendido?,
logo era domingo e os trinta e nove graus ainda estavam com ela, um substrato da pele avermelhada, um intruso cada dia mais íntimo,
e se ignorássemos as advertências e a levássemos assim mesmo a um posto de saúde?,
e segunda a menina foi internada,
e se segunda-feira não fosse segunda?, e se os hospitais funcionassem regularmente aos sábados, aos domingos, sem plantonistas ainda-agora formados, sem plantonistas inexperientes, para quem tudo é desarranjo e pode ser resolvido com dipirona?,
e se aumentassem a dose da droga, de modo que a garota respondesse melhor ao tratamento, de modo que os anticorpos adquirissem viço, coragem e o que mais fosse necessário para derrotar o inconcebível?, e se clamássemos, helena, com mais veemência, para tentarem algo inédito, algo radical, algo para figurar em novos compêndios médicos mundo afora?, só que havia a responsabilidade profissional e contra ela nem mil vidas salvas,
e se tivéssemos transferido a menina para a outra clínica, helena, já que sabíamos (e os exames foram conclusivos) o diagnóstico?, aquela, especializada no surto, aquela que não teríamos como bancar?: era nossa filha e ela devia ter mais valor do que uma mentira, do que um cheque sem fundo, do que uma promessa avalizada por uma assinatura,
e se não aceitássemos a internação, helena? – ela não estaria melhor em casa com a família, no amparo dos objetos dela, na cama, com o pijama de personagens disney, a televisão permanentemente sintonizada no discovery kids, o tigre de pelúcia, os livros?, devíamos ter levado a menina para outro hospital, mais organizado, saneado, evitando, assim, o risco de uma infecção, aliás, houve uma contaminação qualquer?, como ela foi cedendo, se entregando?, quais os passos não acompanhados?, os revides da febre?, as investidas, os recuos?, a queda?,
devíamos ter questionado o atestado, o laudo, o relatório, tudo vago, protocolar,
e lá asseguram: o que nos levou a filha não foi uma infecção, helena,
e sim o vírus, três dias depois,
digito no meu perfil do facebook: bia morreu,
e parece que a tela lateja uma ficção, uma tentativa evidentemente frustrada de catarse, uma frase sem objetivo, sem destinatário, uma frase instantânea, escrita sem exame atento, automática,
aquele verbo subversivo, atávico, pernicioso: morrer:
ainda não havíamos notado: talvez fosse isso o “início do luto”, essa frase: bia morreu,
e de repente bia era um corpo que não podíamos ver: você imaginou, helena, que um dia não seríamos autorizados a estar com nossa criança?, sete anos e não podia partilhar a extinção com os pais, sete anos e a incompreensão, a revolta, o desamparo: nossa filha já não era nossa, já não era filha,
autópsia: outra palavra indefinida,
[primeiro esquartejariam a menina: agora o único movimento era o da doença canibalizando o que restava de sustento, até tudo finalmente perecer,
depois nos entregariam a carne convenientemente costurada, para que, após um beijo, a depositássemos num forno e fosse incinerada,
e nos orientariam a buscar as cinzas uma semana depois,]
e se fôssemos para casa, helena?, se percebêssemos que nossa presença no hospital era apenas um entrave para outros pacientes, que nosso choro às vezes persuadido pelo inconformismo a se tornar um grito, que aquele clamor era somente embaraço para doentes que se desesperavam com a própria desgraça, se notássemos que ali éramos estorvo e contratempo e então fôssemos para casa?,
e se, em casa, preparássemos um chá de camomila, lembrando aqui os rituais que tanto enaltecemos, nos sentássemos no sofá e ressignificássemos os entraves da perda?,
se nos encarássemos nessa tarde e optássemos pelo esquecimento?, se decidíssemos nos deitar um pouco – quem sabe o silêncio, quem sabe o repouso, quem sabe o carinho, quem sabe as horas atropelando a insolência do tempo –, só o tempo, defendíamos, para desbotar as sequelas de toda essa catástrofe,
e se nos entrincheirássemos naquela desordem precária, um tanto abandonada por nós, a saber, a da ousadia, se meu tato se embrenhasse pelos abrigos de seu apetite, helena, fosse se alojando um pouco na geologia de nosso desalento, uma espécie de saciedade remota, de vontade acobertada, escondida, já as roupas no piso desvendando a indecorosa complexidade dos corpos, já a boca inadvertidamente procurando os solavancos da pele e logo cedêssemos à exuberância embrutecedora do sexo, sem nos atinarmos que o desespero é um subterfúgio da dor e que a vida deve sempre avançar, sempre triunfar,
e se voltássemos ao hospital, autorizados a encontrar bia, e exibíssemos a ela esse novo germe em ebulição dentro de você, helena?, essa nova vida efervescendo, interferindo nos meandros de seus órgãos, esse impulso que apresentaremos à bia como uma espécie de perdão?,
sem nos apercebermos que a morte é uma particularidade da existência,
e ela sempre será mais forte do que nós mesmos.
Nome
O QUE DEVIAMOS TER FEITO
CodBarra
9786558640417
Segmento
Literatura e Ficção
Encadernação
Brochura
Idioma
Português
Data Lançamento
01/01/2020
Páginas
168
Peso
235,00
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