O centenário do ensaio introdutor do narcisismo na psicanálise motivou este livro, que analisa o conceito, expõe impropriedades do texto freudiano e vê no narcisismo a causa do mal-estar na civilização. Segundo Freud, o narcisismo é o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação resultante da deflexão da libido autoerótica para o ego, perspectiva em que a libido teria as seguintes fases: autoerótica (anobjetal); narcísica primária (o ego é o objeto), objetal (saída do ego para o objeto) e narcísica secundária (retorno ao ego).

Essa concepção afigura-se incoerente com a última classificação dos instintos, que uniu os instintos sexual e do ego no instinto de vida e conferiu à libido o status de energia do instinto de vida. A libido vital implica sua presença no ego desde sempre, parecendo incorreto imaginá-la a esperar a formação do ego para dirigir-se a ele.

A localização prístina da libido no ego coaduna-se com a inexistência do ego e do id nos primórdios: há apenas um amálgama ego-id herdado geneticamente. O narcisismo é consubstancial ao ego: a trajetória evolutiva começa no narcisismo absoluto (útero), passa para o narcisismo primário (após o nascimento) e se completa com o narcisismo secundário (retorno ao ego, com internalização do objeto).

O narcisismo secundário coexiste com a relação objetal, da qual resulta: a marca do ego desenvolvido é o equilíbrio dinâmico entre o narcisismo secundário e a relação objetal, polos formadores de oposição harmônica geradora de tensão construtiva.

O desequilíbrio nessa balança, quando o narcisismo primário excessivo impregna o secundário, é o principal indutor de distúrbios psíquicos. O mal-estar na civilização decorre da repercussão do narcisismo dos indivíduos nas relações sociais: a ação da onipotência inerente ao narcisismo primário sobre o secundário exacerba o desejo de poder dos indivíduos, fator primordial de perturbação das relações humanas.