Em qualquer ponto perdido do Brasil, assim como suas grandes cidades, onde quer que haja uma banca de jornais, uma tenda de Umbanda ou uma pequena livraria-papelaria, o olhar que percorrer a massa gutemberguiana que se lhe oferece, para todas as seduções da leitura, deparar-se-á com um título que desde logo se lhe apega à vista, magicamente: O Livro de São Cipriano. Livro da tentação e da conversão, é o repertório da excogitação e da encarnação do sortilégio, que se faz estória e se historiciza na tessitura da imaginação e da práxis humana, pelo fio dos motivos remotivados, das figuras refiguradas, dos mitos eternos eternamente remitificados. Escrevendo-se através dos séculos e dos continentes, escritura, como texto popular e erudito, um dos negócios que, no intérmino comércio do espírito com a matéria, do bem com o mal, da santidade com o pecado, da alma com o corpo, são ditos do “demo”. Nas páginas desta fabulante e prodigiosa “cont(a)bilidade”, os tratos do tentador e as tratativas do tentado são outros tantos lançamentos narrativos que vão dos ciclos do “diabo enganado” aos dos pactos fáusticos. Eis do que “trata” Jerusa Pires Ferreira em sua penetrante análise desta “lenda dos tempos” e de um de seus mais arteiros santos-bruxos, este São Cipriano cujas artes fascinaram o imaginário das gerações e que, ainda hoje, continua na plena posse de seus poderes de comunicação. Ao seguir de perto e desvendar as linhas de transmissão desta complexa tradição oral e de suas edições, mapeando os canais, às vezes tão misteriosos, de seu curso sociocultural e narratológico, a pesquisa aqui empreendida só aumenta a atração pelos mágicos “trabalhos” de seu operador. Pois, comprova-se, para o leitor deste estudo, elaborado com todo o rigor crítico e metodológico das ciências humanas de hoje, que tais “Milagres” são os de um real Livro de São Cipriano, que é uma Legenda de Massas.