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“No livro de Lilian Sais, na chave estética de uma temporalidade cindida e simultânea, a mãe é uma citação, uma existência encarada postumamente e que, no entanto, parece também conectar-se à filha, sentir sua dor, condoer-se, querer-se morta, querer-se viva, forjando uma unidade indivisível entre as duas mulheres. Deflagram-se, nesses diálogos entre fantasmas vivos e mortos, outras possibilidades de manuseio da linguagem, impossível linguagem, que desativa a morte como princípio básico do fim. A mãe em O funeral da baleia é o instante suspenso da explosão, no qual ela se torna capaz de multiplicar-se pela totalidade atmosférica. A mãe está para sempre e ao mesmo tempo já não está: dialeticamente ínfima e eterna, diante do mar, presente em todas as coisas do mundo.”
***
Conheça um trecho do romance:
Quando o telefone tocou passava da meia-noite. Boletos, datas festivas, noites sem dormir, exames de rotina, idas ao dentista, canto abafado do pássaro fazendo a curva na estrada. Meses sem volta amontoados juntando poeira na caixa de tudo quanto se recorda, empilharam-se os anos, assim é o tempo. No entanto, se é hora de dizer a verdade, a memória do som estridente do telefone tocando com urgência, meia-noite e trinta e sete minutos, essa permanece sem sombra de pó que a encubra, porque atendi já sabendo de onde ligavam e o que iam dizer.
Perceba, a casa estava escura, justo convém nesses horários. Nesta casa se dorme cedo, mãe disse uma vez, anos antes, quando atendeu ao toque destrambelhado do telefone às nove e meia de uma noite desimportante.
Aquela, contudo, não era uma noite desimportante.
Fosse pressentimento do pai, fosse apenas o acaso operando, sem dar pausa – teria visto ou ouvido alguma coisa? –, eu não sei, porém naquela noite eu e ele ficamos no ofício das xícaras de café e conversamos até tarde. Ele falava sobre um tempo que por ser passado soava doce, mas tradições são tradições e devem ser mantidas, Nesta casa se dorme cedo, mantivemos as luzes apagadas, dois vultos sozinhos na cozinha conversando baixinho para não incorrer na inconveniência de perturbar o silêncio, que durante a noite convém também o silêncio, você sabe, você já entendeu. É esse silêncio que hoje estou disposta a quebrar, feito a torneira da pia, que aquela noite insistia em permanecer pingando, quisesse ela mesma contar a sua versão da história.
Pouco depois de irmos para o quarto, a chamada preencheu a noite. Não acendi lâmpada: conhecia os lás e cás, e convinha o negro. Já diante do aparelho telefônico, percebi por cima do ombro direito que pai me observava imóvel, como se preso em poeira gestante, e que no profundo íntimo daqueles olhos ainda havia grama onde pisar.
Pai podia muito bem ter respondido ao toque do telefone antes de mim, que cruzei a casa toda, mas para ele eram três passos impossíveis de somar um mais um mais outro. Eu sabia. Por isso mesmo executei todos os movimentos do ritual, sem transparecer hesitação. Era um acordo nosso, feito, entendido e selado no silêncio – tradição.
Ele queria jogar um pouco para adiante, Um dia, logo, mas não já. Barganhava. Quem sabe mais uma semana inteira, uma semana inteira seria bom demais. Explicado então por que foi em movimento decidido que assumi a tarefa de tirar o telefone do gancho quando ele tocou. Era a forma miúda que eu tinha de salvar meu pai.
Miúda também a ligação. Vejo o vulto de pai, que caminhou até a mesa e ali se sentou, o contorno cada vez menos maciço daquela pessoa que nunca chamei pelo nome. Olho: o homem por trás do pai, que gira a colher derrubando o café. Mais magro do que eu me lembrava, com mais rugas na testa do que eu alguma vez tivesse me dado conta. Artur Pereira.
Telefone desligado, a cena estava posta. Lá, pai Artur Pereira, as pernas longas como as minhas, mas flexionadas, mais abertas que o necessário. Ele está sentado. Os pulsos apoiados nos joelhos. A cabeça que oscila: olhar reto para a frente, ceder pouco a pouco à gravidade, queixo rumo ao peito. E depois, do começo, olhar reto para a frente e segue, os movimentos que por conhecer adivinho na ausência de qualquer chama. Levanta os braços à altura da mesa e manuseia a colher dentro da xícara de café, regrado e decidido, mas derramando um bom tanto do líquido pelas bordas, como também era de costume. Não é homem de ter delicadeza nos gestos. E toma o café em goles avantajados e poucos, fazendo barulho de se ouvir para lá das paredes. E então coça o saco com a mão direita.
Artur Pereira não usa cueca. Pai é um homem simples, que gosta de dizer que aproveita o conforto possível, o que tem à mão. Os shorts são largos, pretos feito o pássaro. São dois iguais, mas nunca formam dupla, um vai para o balde enquanto o outro fica no corpo, É de ficar em casa, para não gastar as roupas, para ele não tinha complemento além desse. Roupa era uma coisa outra que não aqueles shorts, e pronto.
O exemplar daquele dia, além de largo, guarda há tempos dois furos na risca da costura entre as pernas. Os dois furos nos olhos do Assum Preto, no escuro até fantasiava, quando mais nova. Eu, diante dele, deparo com o saco, com o qual cresci junto, ano a ano, eu para cima, ele para baixo. Observei o quanto pude naquele escuro todo. Estava, de fato, medonho. Um saco sem fim nem fundo nem meio, saco inteiro, daqui a pouco chegaria nos joelhos, tocaria a terra, atingiria o centro dela, plantado, sem nada de necessário que germinasse de novo.
Daí ele derrama mais café, sem perguntar nada sobre o telefonema ou sobre qualquer outra coisa. E pega as palavras cruzadas, fosse de repente fazê-las.
Aconteceu: Artur Pereira é um homem velho e sabe que vai morrer.
Nome
O FUNERAL DA BALEIRA
CodBarra
9786558642343
Segmento
Literatura e Ficção
Encadernação
Capa dura
Idioma
Português
Data Lançamento
01/01/2021
Páginas
138
Peso
280,00
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