Utilizamos cookies para melhorar sua experiência de navegação. Ao continuar, você concorda com nossa política de privacidade. Política de Privacidade..
Conheça 2 contos do livro Coisas do mundo, de Eric Nepomuceno
MEU PÉ DIREITO
Entre o primeiro e o terceiro andar, contei cinquenta e quatro batidas do meu pé direito no chão do elevador. Hoje, quatro anos depois, posso bater sessenta e oito vezes o mesmo pé enquanto percorro o mesmo número de andares – desde, é claro, que seja em um elevador normal. Deve-se dar a primeira batida no momento em que a porta do elevador é fechada, e a última quando ela se abre. Apoia-se o calcanhar e o pé deve, necessariamente, permanecer no mesmo ponto.
Era a primeira vez que nos falávamos por telefone, depois de um ano, e era a primeira vez que iríamos nos encontrar depois de um ano. Subi aqueles três andares e foram cinquenta e quatro batidas de meu pé direito. Eu estava evoluindo rapidamente.
Quando apertei o pequeno botão da campainha do apartamento, senti calor por dentro, e a agonia e o medo desapareceram quando vi você do outro lado da porta, queimada pelo sol da travessia. Sua blusa era provavelmente branca, um colar de ouro com uma presa de javali no pescoço, e não falamos muito no começo. Lembro de você com seus olhos grandes passando a mão em meu rosto e dizendo que eu tinha emagrecido, e isso foi uma pequena vingança. Na verdade, eu tinha engordado três quilos.
Depois você deitou a cabeça em minhas pernas, no sofá, e ficamos outra vez em silêncio. Eu queria largar a amargura e as coisas que tinha perdido, mas que ficaram presas à minha memória. Depois saímos e caminhamos um tempão até encontrarmos um bar todo branco, que nos pareceu um bom lugar. Sentamos e começamos a conversar e a dizer que tudo seria nosso outra vez, que igual não, seria melhor, as melhores coisas as que faríamos, e começamos a falar nessas coisas e desisti das pequenas e amargas derrotas dos últimos tempos.
Na verdade, era como se eu me sentisse outra vez cheio de forças e sabedoria. Queria meu lugar e minhas coisas de volta, embora não soubesse direito qual seria esse lugar e, muito menos, quais as coisas.
Só que nada mais seria igual, apesar do tanto que repetimos isso um para o outro. Dizíamos que as coisas seriam melhores, porque não podíamos deixar de acreditar nisso.
Era a nossa única saída e quando acabou, quando vimos que não seriam nem melhores nem iguais, seriam simplesmente nada, quando vimos isso não soubemos como voltar a contar histórias e a descobrir magias inesperadas.
Aquele foi um dia 10 de dezembro, e foi há quatro anos.
Num elevador normal, hoje, bato o pé direito sessenta e oito vezes em média, entre o primeiro e o terceiro andar.
É claro que não pode haver ninguém mais no elevador, para que eu possa me compenetrar no ritmo e principalmente na respiração, porque essas são duas coisas fundamentais. Desenvolvi várias técnicas paralelas para as distâncias mais longas, mas por enquanto sei que meu melhor desempenho se dá sempre nas distâncias inferiores, entre o primeiro e o quinto andar. Sei também que com o tempo acabarei me dedicando às distâncias maiores, que permitem menos brilho no número de batidas do pé direito, mas exibições primorosas de táticas, regularidade e resistência. O problema que venho enfrentando nas tentativas de longa distância – embora, é claro, sem nenhuma responsabilidade, uma vez que minha especialidade continua sendo as distâncias de até cinco andares – é que os prédios mais altos são mais modernos e os elevadores chegam a atingir a velocidades alucinantes. Dia desses fiz um teste num hotel e me surpreendi: tanto na subida quanto na descida, não consegui manter, numa distância de dezoito andares, uma média superior a seis batidas por andar. Tentei a minha especialidade, e entre o primeiro e o terceiro andar não consegui nada além de quarenta e duas batidas. Terei de estudar melhor a questão do equipamento para estabelecer metas.
Seja como for, é preciso reconhecer que estou numa excelente forma e em plena evolução. O incidente com o elevador do hotel não quer dizer nada. Pensando bem, talvez eu não tenha me concentrado de maneira apropriada na respiração e no ritmo que, como disse, são aspectos fundamentais. Claro que não havia ninguém mais no elevador.
Claro que as coisas não foram exatamente iguais ao que dissemos naquela tarde. Mas era preciso ter dito tudo aquilo, era preciso que nos repetíssemos muitas vezes as mesmas palavras, que repartíssemos forças e mentiras por um tempinho a mais, eu sei disso.
***
TANTO TEMPO
Na verdade, fui descobrindo aos poucos. Um pouco aqui, um pouco ali. Principalmente, um pouco aqui. E o medo, sempre; o pavor: o sangue escorrendo pelo vão das pernas, e depois de novo, e de novo. Mas isso foi há muito tempo, e passou – o pavor.
Ele não aparecia quase nunca. Nem eu nem minhas irmãs tínhamos muita notícia dele. A mãe dizia sempre: “É assim mesmo”. E ficou por isso, ficou nisso.
Quando eu fechava a porta, o que via era apenas a porta fechada: do lado de lá, o mundo. Do lado de cá, tudo. A porta mostrava a madeira pintada de verde, o gancho branco na madeira, feito cabide, e em cima do gancho branco uma plaquinha de bronze, o triângulo de bronze, e do triângulo saíam uns riscos de bronze, como fachos de luz; contei os riscos muitas vezes, muitíssimas vezes, nunca mais consegui recordar, algumas vezes acho que eram seis, outras, que eram oito, mas enfim fachos de luz iluminando tudo, e no meio do triângulo um olho, um enorme, desmesurado olho aberto, o olho de Deus que via tudo, via você ali, nua no banheiro, você em tudo, o tempo todo, você.
Isso era o colégio interno. Ele vinha de vez em quando, muito de vez em quando. Era alto e tinha bigodes e braços grossos e vestia sempre uma camisa branca e não sorria nem dizia muita coisa, vinha de quando em quando, sempre era domingo, e ficava ali, no pátio, e conversava comigo e com minhas duas irmãs, mas pouco. Deixava algum dinheiro, notas enroladas e apertadas que trazia no bolso da camisa branca, fumava dois ou três cigarros, tinha um cheiro forte e eu achava que aquele era o cheiro de homem, que todo homem cheirava daquele jeito, menos o padre, mas o padre era diferente, e eu tinha treze anos e achava que um dia me deixaria abraçar por um homem que teria aquele cheiro e não haveria nenhum olho, o grande olho dentro de um triângulo de bronze, me olhando quando aquele homem me abraçasse com o cheiro do meu pai.
Ele vinha pouco, de vez em quando, muito de vez em quando, e fumava dois ou três cigarros e depois tirava um rolinho estreito de dinheiro do bolso da camisa branca, pouca coisa, e dava para nós.
Assim era.
Tinha bigodes e uma pinta um pouco abaixo da orelha. Era um homem bonito. Eu achava que o homem que fosse me abraçar com cheiro de homem igual ao do meu pai deveria ser pelo menos tão alto e tão bonito e tão forte como ele.
Dois anos depois eu continuava lá. Mas tinha descoberto outros mundos, apesar do olho.
Eu descobrira, por exemplo, que podia me sentar no banheiro e tocar levemente o vão das pernas, o talho, e tocando ali voava, e sabia que era um voo diferente, que aquele olho no meio do triângulo de bronze pregado na porta me olhava enquanto eu voava, e então me empinava para aquele olho, que se danasse o olho, eu queria era voar, e ficava um tempão ali me tocando e o olho de Deus me olhando e eu me perdendo nos ares.
Ele vinha, naquele tempo, cada vez menos. Eu queria mais, outros homens, queria que alguém me tocasse como eu me tocava, mas sem aquele olho, só com o cheiro que eu achava que era o cheiro de homem, de bigode, e mal via que meu pai estava um pouco mais curvado, mais murcho, e que se demorava menos, fumava um cigarro, buscava no bolso da camisa branca o rolinho estreito de dinheiro que deixava na mão da gente e ia logo embora, e tinha os olhos mais claros que vi na vida.
Um olho muito mais claro que o olho que me olhava na placa de bronze atrás da porta quando eu fechava e ficava lá dentro do banheiro me tocando e me sentindo voar e achando que era o céu.
Nunca soube direito qual era a minha história. Minha mãe, que vinha todos os sábados e todos os domingos mas nunca deixava coincidir com a presença dele, e nos levava para a praça e comprava bombas de creme e de chocolate e um sorvete para cada uma e dizia que estava tudo bem, insistia: era assim mesmo. Ele, quando vinha, cada vez mais de vez em quando, ficava ali mesmo pelo pátio, debaixo da árvore, sentado, arfando, sem muito o que falar, e fumava agora um cigarro só, e tinha o mesmo cheiro de homem, e punha a mão no bolso e tirava o rolinho estreito de dinheiro que depois a gente entregava para a mãe e ia embora, aquele homem de olhos claros, os olhos mais claros que vi na vida, claros como aqueles nunca mais, aquele homem meu pai.
E um dia, ele sumiu para nunca mais. E então acabou-se o colégio interno, acabaram as visitas e durante muito tempo não soube mais nada dele nem de nada da história, era apenas minha mãe olhando em silêncio a cara de cada uma de nós.
Nunca soube como foi. Minha mãe, nós, uma casa, aquele homem que não vinha mais, os bigodes, os olhos mais claros que vi na vida, aquele cheiro, meu pai, ele e sua outra casa, diferente de tudo, outra vida, diferente, assim era.
Ele sumiu e fomos ficando. Um dia, minha mãe pediu que eu fosse até a casa dele, um endereço estranho, absurdamente vizinho. Minha mãe, a voz gasta, os olhos fundos de minha mãe: “Vá e diga apenas que a gente existe. Que continuamos vivas. Que vocês cresceram. Não peça nada: diga apenas isso.”
E eu fui. Era uma casa branca, com um pequeno pátio na frente, duas roseiras de rosas brancas, três de rosas vermelhas, e margaridas, tudo muito bem cuidado, e um inesperado pé de café com pequenos grãos vermelhos que tive vontade de morder e sentir o amargor; depois a varanda, vasos de samambaia e avenca, e um cachorro com ar vadio, um pequeno corredor lateral entre o muro e a casa, e fui devagar pelo corredor, vi o quintal e a mangueira carregada e pensei ainda bem que não gosto de manga, mas gostava, era mentira, gostava, e lá no fundo um abacateiro, e não pensei em abacates nem em nada, não quis ver como seria o quintal que não seria meu, nem o lado de lá da casa, eu falava alto, chamando: “Papai, papai”, e ninguém respondia à intrusa, à invasora, e senti medo e quando ia voltando para o portão da entrada vi a pequena janela de onde vinha o barulho de um chuveiro e uma voz de homem, aquela, a de antes, só que mais baixa, num quase sussurro, dizendo: “Aqui, aqui! O que você quer?”, e eu não sabia porque na verdade queria tudo e não queria nada, eu tinha dezesseis anos e queria apenas que ele saísse de camisa branca e bigodes e os olhos mais claros que vi na vida e me abraçasse e me dissesse coisas, essas coisas de pai que nunca me disse e que até hoje não sei quais seriam, que ele viesse, e era um sussurro, “o que você quer, o que foi que houve?”, e só atinei com dizer “minha mãe mandou eu vir aqui”, e então, pela janelinha do banheiro, a que dava pra o corredor lateral da casa, entre o muro e a parede, o corredor que tinha algumas samambaias plantadas em latas redondas, pela janelinha do banheiro, e lá dentro continuava o barulho do chuveiro, pela janelinha do banheiro apareceu a mão, mão direita, mão de dedos gordos e curtos, o punho fechado em torno de um rolinho de dinheiro, a mão de meu pai, e isso é tudo que me lembro.
Sem tristeza, sem alegria: é tudo que lembro.
Claro que nunca mais precisei de dinheiro vindo num rolinho saído do bolso da camisa branca ou da janelinha do banheiro num corredor lateral de uma casa de subúrbio, com samambaias e avencas; claro que não gosto e jamais gostarei de manga-espada e muito menos de abacate; claro que não preciso mais me tocar para voar, pois alguém me toca por e acima de tudo, muitas vezes, quando alguém me toca meu voo é melhor, e não há nada nem ninguém, nenhum olho de Deus num triângulo de bronze me olhando enquanto eu voo.
Outros olhos. Mas havia uma espécie de pôr-do-sol que jamais recuperei, aquele pôr-do-sol no pátio de colégio interno com aquele homem de camisa branca e olhos perdidos, os olhos mais claros que vi, perdidos olhos na claridão do nada.
Isso tudo aconteceu há muitos anos, tantos anos que já nem sei. Muitos, e tantos e muitos, e tantos.
Semana passada, voltei. Foi uma viagem longa. Quando cheguei na cidade, a memória foi ditando o mapa, recordando a cicatriz.
E é assim: você vem pela calçada, há muitas construções novas, e de repente lá está a mesma casa de sempre, mas diferente. O muro já não é branco, se é que alguma vez foi ou se é apenas um truque da memória; o muro é amarelo-claro, e o portão, o portão continua verde, mas está cambaio; cambaio e descascado, e isso é uma espécie de consolo, de vingança: vida cambaia, portão verde.
E então, é assim: você vem pela calçada, você recorda, você sabe: o muro que era branco, se é que foi, e agora é amarelo-claro; o portão, que é e era verde, mas está cambaio; e você bate palmas, pois não há campainha, e lá de dentro vem uma voz de mulher que pergunta o que é; e você se apruma, fica em silêncio, e nisso vê que vem vindo ele, pela calçada vem vindo ele, curvado, e você pensa e sabe que alguma coisa muito importante vai acontecer, e no fundo é só uma manhã de domingo, nada mais que um domingo de manhã, e você não diz nada, não responde à voz de mulher que pergunta outra vez o que é, e vê como ele vem vindo, curvado, a camisa ainda branca, será outra, por certo, mas sempre branca, e o bigode, e os olhos claros, os mais claros que você viu na vida, e ele chega perto e você sorri, e pensa em todos os homens para os quais sorriu enquanto eles iam chegando, e no cheiro deles, e não há nada que se compare ao cheiro que você vai reencontrar agora, e os olhos, os olhos mais claros do mundo, agora encobertos por uma estranha nuvem de tempo e amargura, e você o abraça, sorrindo, e ele se espanta um pouco e pergunta: “É você?”.
Nome
COISAS DO MUNDO
CodBarra
9786558641889
Segmento
Literatura e Ficção
Encadernação
Brochura
Idioma
Português
Data Lançamento
01/01/2020
Páginas
232
Peso
390,00
Configurações de Cookies
Este site utiliza cookies para melhorar a sua experiência. Você pode escolher quais cookies deseja ativar.
Esses cookies são essenciais para o funcionamento do site e não podem ser desativados.
Esses cookies ajudam a melhorar o desempenho do site.
Esses cookies permitem que o site memorize suas preferências.
Esses cookies são usados para personalizar anúncios.